Transcrições dos audios dos vídeos
[O projeto Huguianas, além do ebook, disponibiliza 10 vídeos. Os vídeos são reelaborações de materiais encontrados nos registros das sessões de treinamento de 2017. Parte do material dos vídeos se encontra no Ebook. Eis aqui todos os textos dos vídeos, transcritos por Janette Dornellas. Nas transcrições a oralidade foi mantida quando possível. Os áudios foram gravados no Classic Vibe Estúdio]
VÍDEO 01-Apresentação
Olá, estamos aqui no espaço cultural da 508 Sul, um espaço dedicado a todas as artes, a diversas linguagens e um espaço de excelência pra gente falar do nosso personagem que é Hugo Rodas. Nós estamos realizando uma pesquisa, desenvolvendo uma pesquisa sobre as relações entre teatro e música e Hugo Rodas. Então, nada melhor do que uns lugares onde essas linguagens se comunicam. Essa é a primeira razão. A segunda razão é, que nesse lugar foi inaugurada, em 2022, uma sala dedicada a Hugo Rodas, um teatro - o Teatro Galpão Hugo Rodas, como vocês podem ver aqui.
Esse espaço inaugurado em 2022, alguns meses depois da morte dele, é um espaço dedicado às artes cênicas, às artes performativas e nós temos assim a continuidade de seu legado.
Então, sejam bem-vindos ao Teatro Hugo Rodas, onde nós vamos falar mais do nosso projeto de pesquisa.
14 de abril de 2022. Quem poderia imaginar que esse lugar agora vazio, um lugar de ensaios e de apresentações, se encheu, ficou repleto de pessoas de diversas idades, de diversas formações, artistas, curiosos, companheiros, amigos, parentes, para homenagear nosso querido Hugo Rodas. Quem veio aqui viu um velório inesquecível e um velório que dificilmente vai se repetir. Porque era, ao mesmo tempo que atrás de mim, por exemplo, estava o caixão do Hugo, as pessoas passavam, cumprimentavam, fazendo aquilo que se espera de um velório tradicional, em volta você tinha as pessoas rindo, chorando, e havia o grupo AMACACA, que foi o grupo que acompanhou o Hugo nos últimos anos, foi o último grupo que o Hugo se relacionou, tocando percussão, instrumentos de sopro, de cordas, então havia um misto de festa e de funeral. Uma verdadeira mistura dionisíaca do trágico, do cômico. E um lugar onde não havia silêncio. Existia um lugar de celebração. Ou seja, a melhor palavra que a gente pode trabalhar em relação ao Hugo. E é bem característico dessa estética, dessa poética que a gente pode chamar meio carnavalesca do Hugo, essa interação entre o sublime, o profano, vida, morte, tudo ao mesmo tempo agora. Então, logo depois desse velório-festa, eu fui convidado pela Secretaria de Comunicação da UnB, da Universidade de Brasília, para produzir um texto que eu vou ler um trechinho para vocês, o trechinho final. “Naquele caixão ali na 508 Sul estava um corpo que dançou, esbravejou e agitou plateias e mundos. Tivemos a bela oportunidade, aqui na UnB em Brasília, de sermos contemporâneos de Hugo Rodas, Agora, que a dança não pare, que os braços se ergam e a voz atravesse os ares. Mais forte que a morte.... é a memória do possível...Mãos à obra! Um homem que fez arte para se libertar e libertar os outros nos conclama: saber fazer e lutar. É assim que se vive. É assim que Hugo Rodas, meu querido mestre e amigo, viveu.”
O que eu senti, depois te ter participado dessa celebração, foi que nós ficamos tanto tempo recebendo os espetáculos de Hugo e trabalhando com Hugo e que existia uma memória, toda uma série de registros e que isso precisava ser estudado. E, diante disso, com o impulso desse sentimento, eu propus ao Fundo de Apoio à Arte e Cultura do Distrito Federal essa pesquisa, Huguianas, que tenta não decifrar, explicar o Hugo, porque ele é inexplicável, não é? Mas, tentar encontrar uma racionalidade que ele começou a falar dela, começou a escrever no final da vida dele sobre isso, essa racionalidade. E esse é o ponto principal desse projeto, ou seja, que essa pesquisa, assim como o impacto que ele teve nas nossas vidas continue na vida das pessoas que tiveram contato com ele, que esse impacto continue, ou seja, que seja multiplicado. Eu creio que o trabalho de grandes artistas não é um trabalho apenas sobre si mesmo, mas abrir horizontes para outras pessoas. Em função disso, nós vamos apresentar os tópicos sobre essa pesquisa, Huguianas.
(voz em off) Estivemos, então, no Espaço Cultural da 508 Sul e agora vamos para outro momento da carreira do Hugo que é justamente a Universidade de Brasília. Estamos aqui no Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília, onde Hugo exerceu a sua atividade, desde 1989 até sua morte. Com a aposentadoria compulsória em 2009, ele passou a trabalhar mais na formação de intérpretes, procurando organizar e sistematizar seu conhecimento, em treinamentos regulares, os quais foram em parte filmados, gerando materiais para pesquisas como essa que estamos aqui apresentando.
Como a gente trabalhava nessas oficinas com muitos instrumentos musicais, fazendo muito som e na estrutura do departamento não era trabalhada essa questão sonora, a questão acústica, nós fomos pra sala de dança, para o Núcleo de Dança. Aqui nesse Núcleo de Dança, nós temos um afastamento do Departamento de Artes Cênicas, das atividades regulares lá e nós temos um espaço dedicado ao movimento. Nós temos uma sala espelhada. Nós temos este taco de piso no chão. E foi aqui que foram realizadas as oficinas que nós vamos analisar dentro desse projeto. Nós escolhemos um conjunto de vídeos que é bem homogêneo, está em sequência temporal. Esses vídeos foram gerados entre abril e julho de 2017. Nesses vídeos são registrados encontros semanais com estudantes, dentro de uma disciplina optativa chamada Técnicas Experimentais em Artes Cênicas, TEAC, criada para dar oportunidades aos professores, estudantes do Departamento de Artes Cênicas da Universidade formalizarem atividades fora de sua grade curricular. No contexto de 2017, a gente tem que entender que em 2016, nós olhamos para essa disciplina para uma primeira montagem do espetáculo chamado Salomônicas, que era uma paródia a partir do texto bíblico de situações que estavam acontecendo durante o governo Temer. Nós utilizamos, então, o espaço de treinamento para uma montagem. Essas oficinas do Hugo, elas não eram oficinas que visavam montagem. Então, é bem importante a gente ter em mente essa diferença entre treinamento e montagem. O Hugo, depois da aposentadoria dele, essas oficinas se focavam mais em treinamento, ou seja, em fundamentos básicos, expressivos, do intérprete. Fundamentos de ação, fundamentos de movimento, fundamentos da palavra. E essa relação entre teatro e música começou a se fazer muito presente nesses treinamentos, inicialmente por meio da participação dos próprios intérpretes, que eles eram solicitados a trazer instrumentos, a tocar instrumentos. E depois, com a minha presença, como um compositor residente, um instrumentista residente, como um compositor-músico residente em todos os treinamentos. Então, a transformação da sala de ensaios em uma sala de treinamento, essa passagem do ensaio para o treinamento, foi fundamental. E é fundamental pra gente compreender essas relações entre teatro e música em Hugo. Ou seja, diferentemente de você durante quatro meses, que é o semestre básico da Universidade, você começar com a leitura de um texto, um trabalho de mesa. Depois improvisações, construções corporais, pra gerar um produto para uma plateia, nós tínhamos a oportunidade de cada ser independentes. Você tinha um exercício para aquele dia e o ensaio era dividido em determinadas partes, que nós já vamos falar sobre isso. Então, cada dia, ele tinha a sua própria peculiaridade, um exercício. Mas, ao mesmo tempo, existia uma outra lógica: invés da lógica de você refinar algo para apresentar para alguém, ou seja, essa ideia de uma performance assistida, você tinha a possibilidade de um efeito cumulativo. Então, eu fiz um exercício hoje, um exercício de diagonal, como depois a gente vai comentar que exercício é esse. Esse exercício...não basta um dia só. Eu faço esse exercício, existe um intervalo entre o comando que o Hugo fala, ou seja, o que ele diz para você fazer e depois o que a pessoa vai realizar. E você observa, você como intérprete observa no espelho seu movimento, a sala espelhada. Você observa os outros. Os encontros são filmados. Você observa em casa. Você estuda em casa. Então você tem, ao invés de refinar a ideia de uma montagem de um espetáculo, você tem a possibilidade de refinar as suas próprias habilidades em ação. E isso, formando então um grupo com esta consistência. Ou seja, o grupo ele é formado de pessoas de diversas formações, diferentes idades. Além dos estudantes, nós tínhamos pessoas da comunidade. Não eram só estudantes. Então, você tinha essa heterogeneidade em cena, na sala de ensaios. Mas, você ao mesmo tempo, adquiria, no espaço da oficina, essa coesão na qual você estava exposto a esses treinamentos físicos, expressivos, que eram os mesmos pra todo mundo, feitos intensamente.
VÍDEO 02 – A PROPOSTA
Com sua aposentadoria compulsória em 2009, como professor da Universidade de Brasília, Hugo Rodas passou a estar vinculado à instituição por meio de projeto de pesquisa ligado à pós-graduação em Arte e depois à pós-graduação em Artes Cênicas na Universidade de Brasília. Este projeto, para ele estar vinculado, consistia de um treinamento de fundamentos para intérpretes, a partir de conceitos e exercícios que ele, Hugo Rodas, acumulou durante sua vida artística. A proposta era filmar todos os ensaios e a partir disso gerar material para pesquisas, artigos e livros. Era uma das maneiras pela qual Hugo pensava em passar adiante seu legado histórico e artístico. Porém, durante esse primeiro momento, depois de 2009, não houve um acompanhamento sistemático desses primeiros encontros, que eram realizados de noite, pois nem todos os encontros foram filmados e com o passar do tempo a flutuação da participação esvaziou os encontros. Mesmo assim, o saldo desse primeiro momento das oficinas, que geraram a pesquisa que foi apresentada para o FAC, que a gente está apresentando nesses vídeos, o saldo foi positivo porque a Agrupação Teatral AMACACA foi formada a partir desses treinamentos. E o Hugo passou a encarar a oferta semestral da disciplina como algo contínuo e fechado em si. Os vídeos restantes dessa primeira etapa foram utilizados pelo artista e pesquisador Flávio Café em sua dissertação de Mestrado. Depois desse primeiro momento de treinamentos, eu passei a participar mais diretamente das oficinas regulares como compositor-músico presente em todos os encontros que se davam duas vezes por semana. A partir da minha presença, os encontros passaram a ser registrados mais efetivamente, seja pelo técnico de audiovisual do departamento, seja por mim mesmo. Então, uma das contribuições da participação de mais um professor dentro dessas oficinas foi justamente organizar o registro, a documentação, dessas oficinas. Para esse projeto financiado pelo FAC, foram escolhidos os vídeos do ano 2017, pois eles não se vinculam a uma montagem. Nesse book, os vídeos serão referidos aos dias de sua realização. Cada dia possui diversos vídeos em razão das limitações à época da memória do equipamento utilizado. Assim, cada dia com uma sessão de gravação foi analisada da seguinte maneira: a reunião dos vídeos de cada sessão do registro de encontros; elaboração de um arquivo de texto com a transcrição de cada sessão; a transcrição sobre a cronologia dos eventos, a partir da ordem dos arquivos de vídeos; na abertura de cada arquivo de texto indica-se quem participa dessa sessão, desse encontro; a transcrição apresenta falas de Hugo Rodas em textos sem destaques e os comentários do analista em colchetes; além das falas de Hugo Rodas e dos comentários do analista, são apresentadas informações sobre a organização de cada ensaio e dos exercícios.
VÍDEO 03 – TREINAMENTO VERSUS ENSAIO
O que diferencia muito o treinamento da montagem é que nesses treinamentos havia muito mais intervenção do Hugo em relação aos movimentos dos intérpretes. Ou seja, ele sabia claramente que aquela relação que ele tinha é uma relação artística, ou seja, pela qualidade do movimento. Mas, havia também uma função didática: você está ali para aprender, para enfrentar determinados limites, estejam eles na sua história, sejam eles psicológicos, sejam eles mesmo de técnica. Então, como a turma era heterogênea, você tinha (e desde sempre eu entendi bem essa heterogeneidade da turma, que era justamente você ver pessoas mais experimentadas com pessoas mais iniciantes e esse jogo de múltiplas observações, de um observando o outro), era enriquecedor para a turma. Dentro desse jogo era que o Hugo trabalhava, nesses diversos níveis de experiências. Uma coisa que é fundamental então são esses comentários. Como nós tínhamos três grupos, três perspectivas nos ensaios, então, o Hugo fazia essa mediação entre esses vários níveis aí e que a gente pode chamar, primeiro: há claramente uma dramaturgia da direção, ou seja, o Hugo, mesmo nesse processo de treinamento, ele se comporta fundindo a ideia de um orientador, um provocador, um facilitador, mas também de alguém que tem uma longa experiência de palco e que tem determinados critérios mais ligados a uma experiência efetiva da cena. Então, havia justamente, na dramaturgia da direção, essas diversas vertentes, essas diversas possibilidades. Ou seja, os comentários do Hugo Roas, se a gente for fazer uma tipologia, eles se dirigem a diversos aspectos daquilo que ele está vendo a partir daquilo que os intérpretes apresentam para ele. Então, a primeira instância e a instância condutora e que mobilizava as ações no treinamento é essa dramaturgia da direção. Até o posicionamento do Hugo no lugar para ver tudo e ser visto, estabelecia ele como um eixo dos acontecimentos. Outro elemento que nós temos aí ligado à dramaturgia da direção, dentro dessas sessões de treinamento, que estão nos vídeos de 2017, é uma dramaturgia da atuação, ou seja, os intérpretes, eles eram mobilizados pelos comandos e pelas falas da dramaturgia da direção. Mas havia um intervalo entre aquilo que era solicitado e aquilo que era realizado. Havia justamente incompreensões, dificuldades, limites, e isso era dos dois lados. Ou seja, muitas vezes uma expressão verbal não eficiente da dramaturgia da direção, ou uma compreensão parcial desses comandos, dessas direções por parte da dramaturgia da atuação. E por que que eu chamo que é uma dramaturgia da atuação? Porque isso é uma construção. É uma seleção. O Hugo apresentava determinadas rubricas, determinados comandos verbais, e eles eram selecionados diferentemente. A ideia era justamente de cada vez mais haver uma coesão nessas respostas. Ou, no lugar da coesão, uma coerência: eu estou pedindo isso e você me entrega isso e não outra coisa. Mas há uma negociação. Uma assimetria, uma diferenciação entre essas duas dramaturgias. E existia, desde que eu comecei a participar desses treinamentos, uma dramaturgia sonora, ou seja, eram sons que eram produzidos naquele momento, solicitados pela dramaturgia da direção e provocados, também, pela atuação, pelas ações criativas dos intérpretes. Então, a gente pode perceber esses três aspectos que convivem e que são reciprocamente influenciados que é a dramaturgia da direção, a dramaturgia da atuação e a dramaturgia sonora.
VÍDEO 04 – METODOLOGIA DOS ENCONTROS
Uma coisa muito interessante para a gente perceber nessas sessões/ensaios de 2017 é que, na medida que elas vão se sucedendo, você vê uma estrutura, uma organização. A gente pode chamar isso uma “metodologia de ensaio”. Então, essa metodologia de ensaio era dividir a interação de Hugo com os intérpretes em alguns momentos básicos. Primeiro, havia o momento de contato, o contato inicial. Às vezes o contato inicial é filmado, às vezes não é filmado. Mas, você tem um primeiro momento, onde o Hugo estabelece uma conversa informal, retoma algumas coisas, dá recados. E aí depois tem a proposição do primeiro exercício. Então, aí nós começamos a entrar no momento de aquecimento, um momento inicial desse treinamento. E todo esse treinamento, todas as partes do ensaio, elas são mediadas por falas do Hugo. O Hugo, normalmente, ficava sentado numa cadeira, a não ser que houvesse uma não compreensão daquilo que ele estava solicitando por parte dos intérpretes, ele se levantava, ele ia fazer. Antigamente, antes das operações que ele teve, ele fazia todos os papéis, ou seja, quando ele estava trabalhando em montagem, e não em treinamento, ele marcava mais. Ele tinha uma ideia na cabeça de como seria a encenação e a distribuição dos intérpretes. Então, ele marcava mais. Isso significava que havia uma coreografia das ações, existia uma distribuição dos objetos no espaço e ele fazia essas ações e esses movimentos e essas falas. Era bem interessante observar porque, acima de tudo, o Hugo era um grande ator. Mas, com a passagem do tempo, ele começou a ficar mais como um gestor do acontecimento. Então, ele se sentava na cadeira, ficava lembrando das coisas que eram para fazer, das coisas que tinham sido feitas, das coisas que seriam feitas, das solicitações, como uma reunião em que eu estivesse distribuindo, atribuindo ações. E depois começava o treinamento propriamente dito, com uma parte inicial de aquecimento que, nesse semestre todos foram instados a escolher textos e apresentar pequenos textos. E você tinha, ou isso, ou você tinha um aquecimento comum de movimentos usando as técnicas que ele trabalhava, principalmente câmera lenta, que nós vamos falar em outro encontro, e as diagonais onde você tinha apresentação de materiais, seja individual e em grupos. Depois, a partir do que ele via nessa primeira parte, entrava o miolo da cena ou do ensaio. Aí, a partir desse miolo, você tinha mais analítico o exame das performances, dos exercícios, do treinamento. E, no final, você tinha uma rodinha final onde se comentava o que foi feito, onde ele instava os intérpretes a apresentarem o que que foi feito, por exemplo, podia ser assim: uma palavra para definir o que foi feito hoje; o que você achou do treinamento de hoje. E ele ia dialogando com os intérpretes. Então, a gente pode perceber que a organização do ensaio, a metodologia do ensaio que ele utilizava, era uma divisão em três momentos bem característico; um momento inicial de aquecimento, um momento de desenvolvimento, do meio, um momento mais intenso, e um momento final, onde você tinha essa avaliação do que foi esse encontro.
VÍDEO 05 – CORALIDADES
O primeiro exercício registrado nos vídeos traz a construção de um canto coletivo. É interessante começar assim. Além de integrar todos numa ação comum e divertida, estabelece, como horizonte do treinamento, o fato de todos estarmos juntos: Hugo, os intérpretes e os músicos. Não havia nada antes de começar, nem uma música ou canção previamente escolhida, nenhuma ordem dos que vão cantar, nenhum texto. Hugo está em uma cadeira, em volta dele uma roda com os performers. Hugo propõe: “conhece a brincadeira em que você completa a história?” Então, segue-se um jogo a partir de uma base rítmico-melódica simples. Cada um deve cantar, contar, construindo uma sucessão de performances. No início, estão todos sentados. Hugo vai indicando a troca nos intérpretes e vai fazendo comentários sobre as ações dos cantores. Hugo inicia o jogo, cantando como que anunciando essa sucessão de improvisações cantadas. A primeira parte desse jogo expressa a tentativa de tanto os músicos quanto os intérpretes construírem como o jogo será realizado. Ainda não há uma continuidade rítmico-melódica, nem o encaixe do material. Da mesma maneira que os intérpretes estão construindo as suas respostas para o desafio, para o jogo que o Hugo propõe, da mesma maneira, nesse caso os dois músicos compositores presentes, eles também estão tentando criar o som. Depois de alguns instantes de tentativa de encaixe, a base rítmico-melódica se estabiliza em algo dançável e cantável, como um samba-rock bem lento. Depois desse primeiro momento, onde nós temos os movimentos, a linha vocal performada, dentro dessa harmonia que oscila entre dois acordes, Hugo pede para todo mundo se levantar e, daí, o que era um canto improvisado, uma alternância de improvisos cantados, nós temos um coletivo dançando e cantando como um baile. Nesse baile, um grupo canta se apoiando nos tempos fortes da base rítmica-harmônica e outro realiza contracantos. Então, aquilo que foi desenvolvido quando todos estavam sentados, quando um cantava e outro respondia, esse jogo, a partir dos comentários da direção, enquanto sentados, as pessoas cantavam alguma coisa e o Hugo ia entremeando o final de cada parte cantada, estabelecendo um comentário, aí depois isso se ergue, quando as pessoas começam a fazer o baile, começam aquele jogo que foi testado sentado, daí vem para uma movimentação mais global. Aquilo que era um jogo entre a ação cantada de um intérprete e um comentário do Hugo depois se torna um jogo de movimentos e contramovimentos dos intérpretes. Assim o jogo foi um conjunto de transformações que motivam participações. A cola entre os espaços, num primeiro momento, é a dramaturgia da direção. O Hugo propõe o jogo, inicia o jogo, realiza intervenções no fluxo do jogo e encaminha para uma festiva conclusão. Novamente, como os exercícios indicam, é mais importante a forma do jogo do que o conteúdo das palavras. Então, o resultado final parece uma canção, parece uma dança social, especialmente no uso de um estilema rítmico, um groove. Mas, o foco da atividade não foi vir para o ensaio e fazer o que fazemos em nossas vidas privadas. O que parece uma festa, aos poucos, é redefinido dentro de relações de ensino e aprendizagem artísticas. Pela dança e dançando nos inserimos em outras tramas, na construção mesmo das interações entre as diversas singularidades. Então, esse é o exercício que abre os vídeos, o primeiro exercício registrado nos vídeos. É a passagem de um canto improvisado para uma dança comum. É bem importante então que o fundamento de tudo que está nesse jogo que é essa roda de canção e dança, que é uma atividade coral, primitiva, arcaica, reatualizada nos ensaios. Mesmo quando a mídia dominante, o canal de comunicação dominante é a palavra falada, na mente de Hugo, na proposição de Hugo e na maneira como ele se refere aos seus intérpretes, ele trabalha com esse horizonte coral, o horizonte de um coro. O objetivo dos exercícios então, e aí vem o sentido dessa relação entre teatralidade e música, não é fazer com que nós tenhamos melhores intérpretes como indivíduos. Ou seja, não é a formação individualista de intérpretes. Ou seja, nós temos que as pessoas que vão para lá, os estudantes, os intérpretes, os artistas que participam desses treinamentos, eles estão expostos a uma coletivização do trabalho. É um trabalho coletivo no qual quem produz sons vai ter que também atuar. Quem atua vai ter que produzir sons. Quem dirige vai atuar e produzir sons. Então nós vemos que, bem como a dança, é bem uma metáfora, a coralidade é uma metáfora, algo que define tudo, mesmo que não haja dança, mesmo que não haja som, nós temos essa íntima conexão entre movimento e som.
VÍDEO 06 – MÚSICOS NA SALA DE ENSAIOS
Como a gente havia comentado, nós temos a dramaturgia da direção, uma dramaturgia dos intérpretes e uma dramaturgia sonora. Como a gente tinha conversado, essa dramaturgia sonora e não dramaturgia musical, essa mudança de designação foi feita a partir do momento que nós evitamos relacionar a atividade que está produzindo algo de se ouvir, relacionado com as ações físicas dos intérpretes, essa produção de algo de se ouvir não está relacionada a uma estrutura de uma canção ou a formas previamente organizadas de música. Exemplificando, na maioria das vezes, em sala de ensaios, pelo menos na experiência mais comum, você pega uma música e coloca aquela música na sala de ensaios e começa a desenvolver uma série de movimentos, improvisações, em conexão com esses sons. Mas, o que que acontece? Esses sons, eles estão dispostos dentro de uma cadeia harmônica, dentro de uma ordem de sucessões que foram decididas previamente. Então, as decisões criativas desse arquivo sonoro, que é um arquivo que já está fechado, elas se impõem sobre o intérprete. No caso das oficinas do Hugo, destas oficinas que nós estamos analisando, o treinamento musical, existe uma abertura maior disso, porque as ações físicas dos intérpretes não eram conhecidas previamente e nem a sonoridade era conhecida previamente. Ou seja, o que tinha que ser realizado, tinha que ser realizado naquele momento em conexão com os intérpretes e com as solicitações da direção. Então, não era um arquivo fechado e ao mesmo tempo que esse arquivo é um desafio para o músico compositor, ele é um desafio também para o diretor e para os intérpretes. A direção, ela propunha diminuição do volume, mudança do material que estava sendo apresentado, que já tinha se esgotado seu efeito, mudanças no andamento, mudanças até nas frequências, na altura daquele material. A direção funcionava como um regente, mas um regente de algo que estava sendo elaborado ali naquele momento. Do ponto de vista da dramaturgia musical, atender essas demandas era, você tinha frações de segundos. Quais foram as técnicas que começaram a se desenvolver, que eu comecei a desenvolver? Por exemplo, enquanto o Hugo estava fazendo algum comentário em relação dos movimentos, eu disponha de alguns segundos para olhar quem ia ser o próximo que ia apresentar ou para propor uma determinada ação. Eu tinha alguns segundos para conectar a mente, a mão ao instrumento. Para mudar um pedal, para pensar numa determinada sonoridade. Então eu tinha alguns segundos para estabelecer isso. Entrava o intérprete, o que que era uma coisa que era utilizada numa estrutura de canção, ou seja, eu tenho que acompanhar aquele movimento. Uma solução que é a solução muitas vezes comum ou usual, é você mickeymousear, ou seja, você tentar imitar aquele movimento que é feito. Passos acelerados, acelerar as notas. Ou movimentos mais lânguidos, sofridos, acordes com maior duração. Então, realmente ali o Hugo intervia nisso e demandava da gente ser mais criativo. O que eu comecei a entender, comecei a compreender e foi a partir das intervenções e da demanda do Hugo ser mais criativo, que essa resposta de uma ação sonora, ela teria que ser organizada de uma determinada maneira que levasse em consideração essa assimetria mesmo, essa diferença. O movimento e o som, se você colocar eles em um gráfico, aquilo que você percebe visualmente, que você percebe sonoramente, eles não vão ter sincronia perfeita. Não existe a sincronia perfeita. Não existe a sincronia absoluta entre som e imagem. Existe essa sobreposição: movimento é uma coisa e o som é outra. Tempo e espaço sobrepostos, som e visualidade sobrepostos. São camadas. Então, em alguns momentos vai haver conexão e convergência entre som e imagem, entre movimento e som, mas, em outros momentos não vai. E esse empenho de tentar “pescar um peixe” que está em movimento, essa tensão, ela deve ser substituída por outro elemento, por um processo construtivo. Assim como o intérprete, ele vai propor um gesto inicial ou uma definição de movimento, ou se ele não vai propor, eu tenho que propor. A proposição de um som passou também a ser aproximada da dramaturgia da direção, em alguns momentos, frente a alguns intérpretes mais hesitantes. Então, o que que eu utilizava, uma técnica que utilizava: para cada um que começava, eu propunha um tema. Esse tema, na verdade, ele não é puramente musical, ao invés de chamar de “tema”, pode-se chamar de um “gesto”, ou seja, um gesto que, dependendo daquele gesto, poderia utilizar um material mais harmônico para depois ir para um mais consonante, para depois ir para um material mais dissonante, dependendo do desenvolvimento da cena. Eu poderia, se o cara está no chão, se o intérprete está no chão, eu posso começar com notas mais graves, mais longas. E podia fazer trocado, podia fazer ironias dramático-musicais. Se ele está no chão, eu começar a sustentar notas mais agudas. Então, existiam informações da corporeidade do intérprete que eu poderia interpretar dentro do espectro sonoro, dos parâmetros sonoros. E isso vc tinha esses microssegundos de pensar em algumas coisas que eu poderia fazer a partir dos comentários ou como Hugo fazia os comentários como já em plena performance, diante do intérprete. Então, essas foram duas técnicas básicas que eu comecei a desenvolver aí. Justamente utilizar esses intervalos, quando do comentário do Hugo, para começar a já selecionar algum material que eu iria utilizar. E depois, trabalhar em forma de temas. Então, o que que eu fazia? Eu apresentava esse tema, eu reforçava esse tema e depois eu percebia que, como um som começa, ele chega no seu ápice, estabiliza e depois tem a fase de queda dele, eu, justamente, fazia esse movimento com esse som. Se, por exemplo, o intérprete ampliava sua performance além de um tempo, eu já tinha que fazer um som no meu instrumento para já apontar para ele que já está terminando ou explorar esse aumento do tempo dele de performance. Então, essas conexões elas não eram conexões ligadas a reproduzir sonoramente aquilo que eu estava escutando. O ponto de partida, logo eu fui compreendendo justamente que nós estávamos juntos naquele tempo e naquele espaço, e que haveria algumas convergências, mas que não haveria uma sincronia absoluta.
VÍDEO 07 – DRAMATURGIA SONORA
No caso da dramaturgia sonora, quando solicitada, era de sua função produzir sons a partir da das demandas dos exercícios e das singularidades do que estava sendo feito. Não bastava produzir sons, era preciso acompanhar os intérpretes, observar o que eles faziam. Assim como as mudanças, as transformações dos movimentos e nas reações dos intérpretes, do mesmo modo o músico precisa efetivar mudanças no som. Todos estão em um fluxo comum de modificações. Tais interações ficam claras nos comentários de Hugo. No dia 09 de maio de 2017, ele se dirige ao Carlos Cazem. Durante as nossas oficinas nós tínhamos dois músicos, que às vezes os dois estavam presentes, às vezes um ou outro. Havia essa alternância. Carlos Cazem é um músico luthier da cidade e que participou dessas oficinas de treinamento. Então o Hugo fala assim nesse dia: “uma das coisas que eu vou te pedir, Carlos, no outro dia com o Marcus, foi muito interessante. Marcus não fez o mesmo ritmo nem o mesmo tempo, nem a mesma melodia para cada pessoa. Olhava para a pessoa e focava em algo. Então, a mudança, câmbio, significa defender alguma coisa. Aquilo que podemos fazer com isso.” O contexto do comentário é de uma prática bem habitual nos treinamentos. A sucessão de intérpretes apresentando seu material em sequência. Seja organizando uma cena italiana com um intérprete individual no centro e a audiência de colegas assistindo, seja no trânsito de uma diagonal, temos como em um desfile, em uma audição, a sucessão de pequenas performances, e para cada performance é necessário produzir um tipo de som. Essa era realmente a parte mais desafiante dessas oficinas. Era um momento em que cada intérprete tinha, às vezes, 50 segundos e havendo essa alternância desses intérpretes que apresentavam seus textos ou suas cenas, essas pequenas cenas. E, quem estava produzindo som naquele dia, tinha que ter uma reposta para cada um. Às vezes, eram vinte. Imagine produzir um som novo para cada uma daquelas cenas ali e ao vivo, diretamente em resposta ao que está sendo apresentado. Antes da solução enfrentada no primeiro encontro registrado, foi de um mesmo material, uma mesma base rítmico-melódica que era variada durante a sucessão dos intérpretes. Então, isso era uma coisa bem constante, ou seja, você tinha vários intérpretes em sequência apresentando cada um os seus segundos, seus minutos, e você ligava todos os intérpretes com o mesmo som, que podia ser um ritmo que estava sendo tocado dependendo daquilo que está sendo produzido, um rimo mais intenso, um ritmo mais lânguido. Essa prática é herdeira do cancionismo, de haver uma canção e o músico sustentar as performances vocais, ou seja: primeiro plano é alguém cantando, segundo plano é você produzindo uma base melódica para aquele canto. Uma mudança desse paradigma foi de haver a mais estreita conexão e vínculo entre sons e as ações do intérprete. Isso realmente aconteceu a partir dos treinamentos. Durante muito tempo, desde 98, 99, eu trabalhava com Hugo e então eu ia para a cena e tocava a canção, ou seja, para ter canção ao vivo. Os métodos à época mais habituais era você gravar, ter uma música gravada, tocar um playback. Como muitos dos musicais que a gente foi desenvolvendo, eu e o Hugo, eram de minha autoria, as canções eram de minha autoria, invés de gravar um playback, eu mesmo ia lá e tocava em todos os ensaios. E foi assim que eu comecei a participar mais ativamente das artes cênicas e compreender essa direção em ação. Então, no lugar desse som pré-gravado, você tinha que produzir sons. Só que nesse momento, eu era um que acompanhava os cantores. Em quase todo os ensaios havia essa ocasião dos intérpretes se apresentarem individualmente. Tomava grande parte da aula, como um longo bloco de atividades. Algumas vezes, Hugo, para que houvesse comparação ente as performances, solicitava que o material rítmico-melódico não variasse. Então, você tem uma mesma base, uma “cama”, e você tem a variação de primeiro plano que é a atividade do ator. Era um grande desafio tornar-se um looping humano. Ou seja, na época eu não usava pedais ainda então seria muito mais fácil gravar uma base e passar um looping em repetição. O fato mesmo de convidar o Carlos Cazem para participar comigo dos ensaios se deu, além da bela sonoridade que ele produz, que ele sabe bem produzir, é em virtude de ele ter uma expressividade bem eficiente, intuitiva na mediação tecnológica dos sons, sabendo usar muito bem os pedais. Nesse comentário do Hugo, residiu um grande desafio para a dramaturgia sonora: quem produz sons não é apenas um executante. Eu faço questão de marcar aqui dramaturgia sonora e não dramaturgia musical. A ênfase naquilo que vai ser escutado. O som engloba tudo: os efeitos, som instrumental, sons vocais, ruídos. É uma visão mais abrangente. É necessário participar criativamente do que está acontecendo naquele espaço-tempo. A partir disso e dessa diferenciação entre acompanhar canção e produzir sons ao vivo para intérpretes, eu comecei a desenvolver o projeto “Compositor na sala de ensaios”. Para enfrentar a necessidade daquilo que se impunha, passei a compreender que não era apenas o músico em cena que dominava tecnicamente o instrumento. Eram necessárias outras habilidades. O saber tocar vincula-se a observar os intérpretes, acompanhar seus movimentos, gestos, emoções, palavras, tudo que eles produziam em copresença. Para tanto, dentro desse fluxo de trocas e interações com os intérpretes, é preciso seguir as interpretações. É isso que na fala do Hugo está bem marcado, lembrando que ele falava uma das coisas que: “o Marcus não fez o mesmo ritmo, nem o mesmo tempo, nem a mesma melodia para cada pessoa”. Mesmo aqui significa que o responsável pela fonte sonora permanece dentro de sua individualidade. Ele está isolado daquilo que está acontecendo diante dele, dentro de um raio de ação autocentrado, alheio ao que está em sua volta. Sua atividade volta-se para si mesmo. Ele se preocupa em seguir alguma lógica ligada à sua performance instrumental, sejam padrões musicais prévios como sequências de acorde dentro, por exemplo, de parâmetros da harmonia funcional. Ao mesmo tempo, temos o plano da sonoridade e o plano das ações físicas, mas apenas nessa frontalidade e copresença, os planos não se relacionam, ou melhor, a opção por dispor esses planos em exclusão. Só que nessa situação de exclusão, de não compartilhamento é forçada, abstrata, pois tanto o músico instrumentistas quanto os intérpretes estão cojogados no mesmo espaço-tempo. Então eu posso ficar tocando sem ter uma relação com quem está atuando, mas isso é uma situação abstrata porque, de fato, quem está diante de mim, está realizando suas razões e estou diante dessa pessoa no mesmo tempo, naquele mesmo espaço. E esses sons e essa ações, elas negociam de alguma maneira mesmo que eu faça um tremendo esforço para não ouvir e para não ver. Assim, da mesma de que cada intérprete apresenta um conjunto de decisões criativas corporais in loco, também o músico deveria apresentar uma sucessão de decisões criativas quanto aos sons que dispara com seus instrumentos. Para fazer isso, tanto cada intérprete quanto instrumentista precisam sair de sua individualidade, de sua concordância consigo mesmo e explorar suas possibilidades, seu material, seja no corpo, seja na musicalidade. Uma das coisas que ele fala, que está ali na mesma fala, ele diz assim, que “ele olhava para a pessoa e focava em algo”. Esse foi o diferencial. O músico em situação de performance, conectado aos intérpretes é alguém que está olhando, observando aquelas pessoas e a partir dessa interação, ele vai selecionar sons a partir e em resposta a essa observação. Ele é tanto um agente sonoro que produz som, como alguém ligado à visualidade. Quem produz sons também vê, observa ao que está diante dele. A conexão entre som e visualidade nesse intercampo multissensorial é seletiva, reivindica atos de escolha e sons, porque ele não só olhava para a pessoa, mas ele enfocava algo. Ele selecionava algo. Esse desenvolvimento dessa habilidade de olhar para algo que está em movimento, que está em transformação, nesse fluxo, selecionar alguma coisa e a partir dessa alguma coisa estabelecer uma conexão sonora, foi uma coisa que não veio do dia para noite. Ela foi aprendida durante esses treinamentos. Durante esses treinamentos nós tivemos, não só o desenvolvimento de habilidades, o aprimoramento das habilidades dos intérpretes. Nós também tivemos o desenvolvimento das habilidades de alguém que era antes um músico acompanhador e que depois se transformou num compositor músico ligado imediatamente àquilo que estava observando.
VÍDEO 10 – A CÂMERA E EU
Uma das coisas bem presentes nesses vídeos das sessões de treinamento é que claramente o Hugo se dirige para a câmera. Ele sabe que está sendo filmado. Ele sabe que aquele material vai ficar além do tempo de existência física dele aqui na terra. Ele reforça isso para os intérpretes, para as pessoas que estão participando das sessões de treinamento e ele algumas vezes olha para a câmera, quebrando, se existisse essa ilusão, mas não, ele sabe muito bem que ele está sendo filmado e que aquilo ali está sendo registrado. Ele orienta os intérpretes a consultar os vídeos, analisarem os vídeos, a estudarem os vídeos, a se valer dessa possibilidade, ou seja, no século 19 você cadê esse material? Não foi filmado os treinamentos, os ensaios, nós não temos isso. Como hoje com a facilidade que nós temos de, à mão, você ter muitos desses ensaios foram gravados da câmera de um celular. Como a gente tem essa portabilidade desses recursos, muitas vezes a gente usa mais informalmente do que dentro desses encontros, desses registros de práticas artísticas, de práticas criativas. E por que isso? Isso é uma coisa a ser discutida, a ser pensada. Hugo quis que esse material fosse filmado. Ele levou em consideração isso. Ele, no projeto dele, era esse material ser produzido. Porque, muitas vezes, a gente tem uma associação entre uma improvisação livre ou uma liberdade de movimento e a gente tem relação muito idealista disso, ou seja, toda essa exploração de possibilidades que os movimentos, a partir dos treinamentos do Hugo, possibilita, toda essa liberdade, ela vem de um estudo que é feito tanto in loco, quanto depois a partir desse material registrado e filmado. Outro aspecto desse material filmado, registrado, é justamente uma mudança no próprio comportamento do Hugo que, como professor da Universidade, eu falo dele, dessa parte dele, e como artista, como diretor profissional, não havia muito tempo ou o foco não era pra ele expor as suas ideias. Não era aquilo que se esperava dele nem que, frente à pressão de treinamento, de ensaio, especificamente da aplicação da ideia de montagem, essa pressão toda, essa urgência toda, fazia com que não houvesse esse tempo dedicado a alguns momentos a ver justamente aflorar esse Hugo pensador das artes cênicas. Principalmente, a partir da aposentadoria dele, em especial dentro desses treinamentos, dessas sessões de treinamento, em vários momentos nós observamos, e isso fica registrado que ele não só explicita alguns dos seus pressupostos, aquilo que ele acha, que é a arte, questões estéticas gerais da arte, como também, ele começa a falar um pouco sobre essas conexões entre as diversas artes, as relações entre arte e música, essas relações entre a cena e sua construção. Então, os vídeos, num primeiro momento, a gente precisa pensar que eles são os registros dessas sessões de treinamento, mas eles são também o registro de um pensamento que vai sendo construído não continuamente, mas em diversos momentos. E a transcrição dessas falas ela é um momento de você registrar esse pensamento em construção e a partir disso um desafio para pesquisadores e intérpretes artistas de, a partir dessas falas, ver qual o referente dessas falas. Qual argumentação que está por detrás dessas falas? Eu creio, acompanhando o Hugo nos últimos vinte anos dele que essa mudança que a Universidade fez nele, de um encenador, de um diretor profissional, a ter que encarar um outro tempo, que é o tempo da Universidade, um tempo didático- pedagógico, mas, é também um tempo de reflexão, fez com que, pouco a pouco, ele começasse a assumir um outro papel que não estava só diretamente ligado a um cumprimento de uma função imediata. Estava ligado a uma ampliação desse papel do artista como criador e como pensador
Comentários
Postar um comentário